sábado, 25 de outubro de 2008

O Beato Romano

"Eu estava semidespido na rede, voltei-me procurando um lençol para me cobrir o corpo - e quando vi ela estava nos meus braços, ou eu nos seus braços - que sei? Era a vida e era a morte, era o abismo, a perdição. A mulher, o perfume, o corpo macio. A paixão, meu Deus. A paixão. Senti que ia morrer e não me importava de morrer. Devemos ter caído os dois na minha dura cama de padre. Nela morremos juntos, os dois. No outro dia ela voltou. E o meu corpo e o meu coração a esperavam. Durante uma semana inteira ela veio, e me parecia uma conjuração provocada por um sonho: a sombra escura que entrava, leve como se não pisasse o chão, o xale preto que caía sobre o ladrilho do quarto - e então era ela, ela, ela. O deslumbramento do amor que eu não conhecia, que eu não sabia assim, que eu ignorava, inocente como uma virgem. Ela que me guiava, me conduzia, me afundava consigo. E, depois de um tempo que parecia absurdamente curto, ela se erguia, se compunha, se envolvia no xale e ia embora..."
Trecho extraído do livro Memorial de Maria Moura, de Raquel de Queiroz. 14º ed. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 2004. pág. 157-158.

domingo, 19 de outubro de 2008

Ai, quem me dera.

Ai quem me dera, terminasse a espera
E retornasse o canto simples e sem fim...
E ouvindo o canto se chorasse tanto
Que do mundo o pranto se estancasse enfim

Ai quem me dera percorrer estrelas
Ter nascido anjo e ver brotar a flor
Ai quem me dera uma manhã feliz
Ai quem me dera uma estação de amor

Ah! Se as pessoas se tornassem boas
E cantassem loas e tivessem paz
E pelas ruas se abraçassem nuas
E duas a duas fossem ser casais

Ai quem me dera ao som de madrigais
Ver todo mundo para sempre afins
E a liberdade nunca ser demais
E não haver mais solidão ruim

Ai quem me dera ouvir o nunca mais
Dizer que a vida vai ser sempre assim
E finda a espera ouvir na primavera
Alguem chamar por mim...

in "Poesia completa e prosa: "Cancioneiro""

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Dois

Dois...
Apenas dois.
Dois seres...
Dois objetos patéticos.
Cursos paralelos
Frente a frente...
...Sempre...
...A se olharem...
Pensar talvez:
“ Paralelos que se encontram no infinito...”
No entanto sós por enquanto.
Eternamente dois apenas.
Dois - Errante

Pablo Neruda

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Sedução

A poesia me pega com sua roda dentada,
me força a escutar imóvel
o seu discurso esdrúxulo.
Me abraça detrás do muro, levanta
a saia pra eu ver, amorosa e doida.
Acontece a má coisa, eu lhe digo,
também sou filho de Deus,
me deixa desesperar.
Ela responde passando
a língua quente em meu pescoço,
fala pau pra me acalmar,
fala pedra, geometria,
se descuida e fica meiga,
aproveito pra me safar.
Eu corro ela corre mais,
eu grito ela grita mais,
sete demônios mais forte.
Me pega a ponta do pé
e vem até na cabeça,
fazendo sulcos profundos.
É de ferro a roda dentada dela.

Adélia Prado

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Blimunda - Memorial do Convento

Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, está calado, apenas olha fixamente Blimunda,
e de cada vez que ela o olha a ele sente um aperto na boca do estômago,
porque olhos como estes nunca se viram, claros de cinzento,
ou verde, ou azul, que com a luz de fora variam ou o pensamento de dentro,
e às vezes tornam-se negros noturnos ou brancos brilhantes como lasca
de carvão de pedra. MC, 48

(...) mas agora só tem olhos para os olhos de Blimunda,
ou para o corpo dela, que é alto e delgado como a inglesa que
acordado sonhou no preciso dia em que desembarcou em Lisboa. MC, 48

Olhaste-me por dentro, Juro que nunca te olharei por dentro,
Juras que não o farás e já o fizeste. MC, 49
Trecho retirado do livro Memorial do Convento, de José Saramago.