segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Receita de Ano Novo


Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação como todo o tempo já vivido
(mal vivido ou talvez sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser,
novo até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?).
Não precisa fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

O Poeta Diz a Verdade


Quero chorar minha mágoa e digo-te
para que tu me ames e me chores
em um anoitecer de rouxinois,
com um punhal, com beijos e contigo.

Quero matar a única testemunha
para o assassinato de minhas flores
e converter meu pranto e meus suores
em eterno montão de duro trigo.

Que não acabe nunca a madeixa
do bem me quer, mal me quer, sempre ardida
com decrépito sol e lua velha.

Que o não me dás e não te peça
será para a morte, que não deixa
nem sombra pela carne estremecida.

Frederico García Lorca

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

RECEITA


Ingredientes

dois conflitos de gerações
quatro esperanças perdidas
três litros de sangue fervido
cinco sonhos eróticos
duas canções dos beatles

Modo de Preparar

dissolva os sonhos eróticos
nos três litros de sangue fervido
e deixe gelar seu coração

leve a mistura ao fogo
adicionando dois conflitos
de gerações às esperanças perdidas

corte tudo em pedacinhos
e repita com as canções dos beatles
o mesmo processo usado com os
sonhos eróticos mas desta vez
deixe ferver um pouco mais e
mexa até dissolver

parte do sangue pode ser
substituído por suco de groselha
mas os resultados não serão os mesmos

sirva o poema simples
ou com ilusões

Nicolas Behr, Restos Vitais. 

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Não me fechem as portas


Não me fechem as portas, orgulhosas
Bibliotecas,
Pois justamente o que estava faltando 
Em tuas prateleiras apinhadas,
É o que venho trazer 
- mal acabando de sair da guerra,
um livro escrevi:
pelas palavras do meu livro, nada;
pelas intenções, tudo!
Um livro à margem,
Sem nada a ver com os restantes,
E que não pode ser sentido só
Com o intelecto.
Vocês, porém, com seus silêncios latentes,
A cada página hã de estremecer
Maravilhadas.


Walt Whitman

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Cinquenta Tons de Cinza - E. L. James


                Well, well, well, finalmente li a trilogia sobre a qual todos estão falando, lendo, comprando, baixando na internet e adorando nos quatro cantos do mundo. Devido às cenas de sexo explícito e romance mamão com açúcar, o livro tem sido considerado por muitos como mommy porn, pornô para mamães, ou Cinderela tarada, em uma referência à personagem principal, e também narradora da história, Anastia Steele.

         Para ser franca, fiquei envergonhada ao começar a ler. Não é uma literatura que as pessoas estão acostumadas (pelo menos eu). Mas como não deixar de se apaixonar por aquele homem, o Apolo bilionário Christian Grey?! Jesus, Maria José.... que homem é esse, capaz de levar uma virgem a ter três orgasmos em sua primeira transa? O cara é simplesmente o deus do sexo!!!!

         A história já é conhecida, o cara bilionário que se apaixona pela garota tímida e inteligente. Ele, experiente. Ela, inocente. Eles não podem se tocar que já estão tomando choque. São só pele, mãos, dedos, língua, corpos.... santo Deus!!! Ele, superprotetor. Ela, superdesastrada. Ele quer tomar conta dela, dar-lhe o céu, se possível a lua também. Ela não quer o dinheiro, apenas o seu amor! E de novo são só cheiro, tato, olhos no olhos.... Jesus, eles não se cansam nunca!!!

         Christina Grey parece ser o príncipe encantado de Anastasia Steele, se não fosse por seu caráter totalmente obscuro e dominador. Ele, possui na sua big cobertura um “quarto vermelho da dor”, cheio de amarras, algemas, açoites, chicotes, plugues e outras cositas mais. Ele supercomplexado, sofrido, fodido em cinquenta tons. E ela, bem, ela parece ser a cura! Ele, gosta de sadomasoquismo. Ela, nem sexo conhece direito.

Literariamente, o livro deixa a desejar. Parece que já nos cansamos desse amor arrebatador de Edward e Bella. Mas também não é ruim. Dá pra entender? Não é ruim porque nós, mulheres, no fundo sonhamos com um homem lindo de morrer, gentil, educado, que arraste aos nossos pés e não nos deixe ir embora jamais! Sonhamos com um homem que mudaria por amor a nós. Por isso gostamos tanto da história e fantasiamos com o Sr. Grey. Afinal, será que um dia cansaremos de ler, ver ou ouvir uma história de amor tão tórrida assim? Eu pelo menos, acho que não! 

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Excerto de O Amor Esquece de Começar



Dar um tempo não deveria existir porque não se deu a eternidade antes.

Quando se dá um tempo é que não há mais tempo para dar, já se gastou o tempo com a possibilidade de um novo romance. Só se dá um tempo para avisar que o tempo acabou. E amor não é consulta, não é terapia, para se controlar o tempo.

Quem conta beijos e olha o relógio insistentemente não está vivo para dar tempo. Deveria dar distância; tempo, não. Tempo se consome, acaba, não é mercadoria, não é corpo. Tempo esgota, como um pássaro lambe as asas e bebe o ar que sobrou de seu vôo.
Qualquer um odeia eufemismo, compaixão, piedade tola. Odeia ser enganado com sinônimos e atenuantes. Odeia ser abafado, sonegado, traído por um termo. Que seja a mais dura palavra, nunca dar um tempo.

Dar um tempo é uma ilusão que não será promovida a esperança. Dar um tempo é tirar o tempo.

Dar um tempo é fingido. Melhor a clareza do que os modos.

Dar um tempo é covardia, é para quem não tem coragem de se despedir.

Dar um tempo é um tchau que não teve a convicção de um adeus.

Dar um tempo não significa nada e é justamente o nada que dói.

Resumir a relação a um ato mecânico dói. Todos dão um tempo e ninguém pretende ser igual a todos nessa hora. Espera-se algo que escape do lugar-comum. Uma frase honesta, autêntica, sublime, ainda que triste.

Não se pode dar um tempo, não existe mais convergência de tempo entre os dois.
Dar um tempo é roubar o tempo que foi. Convencionou-se como forma de sair da relação limpo e de banho lavado, sem sinais de violência.

Ora, não há maior violência do que dar um tempo. É mandar matar e acreditar que não se sujou as mãos. É compatível em maldade com "quero continuar sendo seu amigo".

O que se adia não será cumprido depois.

Fabrício Carpinejar

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Manoel de Barros - Memórias inventadas


Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palabras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito 
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas.
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o  mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática: 
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.


Excerto de Memórias Inventadas - As Infâncias de Manoel de Barros.




sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Excerto de "Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres"


         "Através de seus graves defeitos - que um dia ela talvez pudesse mencionar sem se vangloriar - é que chegara agora a poder amar. Até aquela glorificação: ela amava o Nada. A consciência de sua permanente queda humana levava ao amor do Nada. E aquelas quedas - como as de Cristo que várias vezes caiu ao peso da cruz - e aquelas quedas é que começavam a fazer a sua vida. Talvez fossem os seus 'apesar de' que, Ulisses dissera, cheios de angústia e desentendimento de si própria, a estivessem levando a construir pouco a pouco uma vida. Com pedras de material ruim ela levantava talvez o horror, e aceitava o mistério de com horror amar ao Deus desconhecido. Não sabia o que fazer de si própria, já nascida, senão isto: Tu, ó Deus, que eu amo como quem cai no nada."

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

A Vã Pergunta


Esta jovem pensativa, de olhos cor de mel e de longas pestanas penumbrosas
Que está sentada junto àquele jovem triste de largos ombros e rosto magro
É ela a amada dele e é ele o amado dela e é a vida  a sombra trágica dos seus gestos?
Este trem veloz cheio de homens indiferentes e mulheres cansadas e crianças dormindo
Que atravessa esta paisagem desolada de árvores esparsas em montes descarnados
É ele o movimento e é ela a fuga e são eles o destino fugitivo das coisas?
Que dizem os lábios murmurantes dele aos olhos desesperados dela?
Que pronunciam os lábios desesperados dela aos olhos lacrimejantes dele?
Que pedem os olhos lacrimejantes dele à paisagem fugindo?
Não são eles apenas uma só mocidade para o tempo e um só tempo para a eternidade?
Não são seus sonhos um só impulso para o amor e os seus suspiros um só anseio para a pureza?
Por que este transtorno de faces e esta consumição de olhares como para nunca mais?
Não é um casto beijo isso que bóia aos lábios dele como um excedimento da sua alma?
Não é uma carícia isso que freme nas mãos dela como um arroubo da sua inocência?
Por que os sinos plangendo do fundo das consolações como as vozes de aviso dos farois perdidos?
É bem o amor essa insatisfação das esperanças?


Vinícius de Moraes

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Um Sonho Dentro de Um Sonho


Este beijo em tua fronte deponho!
Vou partir. E bem pode, quem parte,
francamente aqui vir confessar-te
que bastante razão tinhas, quando
comparaste meus dias a um sonho.
Se a esperança se vai, esvoaçando,
que me importa se é noite ou se é dia...
ente real ou visão fugidia?
De maneira qualquer fugiria.
O que vejo, o que sou ou suponho
não é mais do que um sonho.

Fico em meio ao clamor, que se alteia
de uma pria, que a vaga tortura.
Minha mão grãs de areia segura
com bem força, que é de ouro essa areia.
São tão poucos! Mas fogem-me, pelos
dedos, para a profunda água escura. 
Os meus olhos se inundam de pranto.
Oh! meu Deus! E não posso retê-los,
se os aperto na mão, tanto e tanto?
Ah! meu Deus! E não posso salvar 
um ao menos da fúria do mar?
O que vejo, o que sou ou suponho
será apenas um sonho num sonho?

Edgar Allan Poe

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Razão e sentimento



           É a primeira vez que posto aqui no blog resenha de um livro. É que acabei de ler o livro Razão e Sentimento (Sense and Sensibility), da escritora inglesa Jane Austen, e estou enlouquecidamente in love por essa história, que senti uma espécie de frenesi. Uma voz ficou martelando aqui no meu ouvido me dizendo para escrever sobre esse livro. Então vamos lá.

 Foi o primeiro livro publicado pela escritora, em 1811. Primeiramente, é impressionante como a escrita de Austen nos transporta para o século XIX com tamanha facilidade pela riqueza de detalhes dos lugares, das roupas, dos hábitos e costumes da época. A história das irmãs Dashwood me encantou de tal maneira, talvez porque elas fossem sonhadoras, inteligentes, meigas, bem-educadas, pessoas que sabem apreciar literatura, música e arte, ou então, porque eu me deliciava mesmo com aquelas paisagens bucólicas e traçava comparações com os costumes da época, o fato é que eu não queria que a história tivesse fim. E olha que já tinha assistido o filme antes, ou seja, já sabia o que ia acontecer no fim, mas o livro.... Ah, o livro!!!!

Bom, o livro conta a história de duas irmãs, Elinor e Marianne, que embora de personalidades diferentes, se amavam de uma maneira intraduzível. Elinor é a “razão”, a irmã mais velha, sensível e reservada, enquanto Marianne, a filha do meio, é extremamente passional e espontânea. Há ainda a irmã mais nova, Margaret, uma personagem secundária. O romance trata da clássica dicotomia lógica versus paixão.

Jane Austen mostra uma sociedade inglesa nos anos 1800s em um perfeito retrato da aristocracia britânica, apresentando sentimentos humanos que são atemporais. As duas mulheres vivem em uma sociedade construída pelo pensamento de que o “ter” é mais importante que o “ser”, uma sociedade construída pelo senso comum.  

Nesta sociedade, Elinor aprendeu a refrear os seus sentimentos, assim como a sociedade da época dizia que tinha que ser. Após a morte do pai, Henry Dashwood, ela e sua família têm que se mudar da propriedade que até então moravam. Elinor se apaixona por Edward, cunhado de seu irmão, mas mantém os seus reais sentimentos escondidos.

Na nova casa, Marianne se vê enlaçada pelos encantos do jovem Willoughby, mas ao contrário da irmã, não esconde os seus sentimentos de ninguém, aliás, uma atitude totalmente não convencional para a época. Mas, o mundo não é feito só de amores, e as senhoritas Dashwood se veem às voltas com preconceitos, falsidades, pensamentos machistas e casamentos por conveniência. Tudo era diferente no século XIX, o livro não fala de uma cena de beijo ou sexo sequer. As personagens mal se tocam, mas se amam, se admiram e respeitam de verdade.   
      
A dissimulação ditava os comportamentos. Elinor, como dito anteriormente, era tão sábia e contida, que até mesmo nas ocasiões mais difíceis se mostrava uma mulher forte e decidida, embora estivesse se desmoronando por dentro. Marianne não escondia nada, tão imatura, sua aparência estampava ira, paixão, decepção, exuberância. Era tão incontida que seu estado emocional foi posto em xeque e apresentou graves problemas de saúde.   

As duas irmãs erram em seus julgamentos, cometem erros e aprendem com eles. Aprendem que para encontrar felicidade pessoal na sociedade britânica do século XIX, em que status e dinheiro governavam as regras do amor, era preciso aprender a dosar razão e sentimento. Eu super recomendo!!!

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Canto do Meu Canto


Escrevi no chão do outrora 
e agora me reconheço: 
pelas minhas cercanias 
passeio, mal me freqüento. 
Mas pelo pouco que sei 
de mim, de tudo que fiz, 
posso me ter por contente, 
cheguei a servir à vida, 
me valendo das palavras. 
Mas dito seja, de uma vez por todas, 
que nada faço por literatura, 
que nada tenho a ver com a história, 
mesmo concisa, das letras brasileiras. 
Meu compromisso é com a vida do homem, 
a quem trato de servir 
com a arte do poema. Sei que a poesia 
é um dom, nasceu comigo. 
Assim trabalho o meu verso, 
com buril, plaina, sintaxe. 
Não basta ser bom de ofício. 
Sem amor não se faz arte.

Trabalho que nem um mouro, 
estou sempre começando. 
Tudo dou, de ombros e braços, 
e muito de coração, 
na sombra da antemanhã, 
empurrando o batelão 
para o destino das águas. 
(O barco vai no banzeiro, 
meu destino no porão.)

Nada criei de novo. 
Nada acrescentei às forma 
tradicionais do verso. 
Quem sou eu para criar coisas novas, 
pôr no meu verso, Deus me livre, uma 
invenção.

Thiago de Mello


domingo, 28 de outubro de 2012

Balada de amor perfeito


Pelo pés das goiabeiras, 
pelo braços das mangueiras, 
pelas ervas fratricidas, 
pelas pimentas ardidas, 
fui me aflorando.

Pelos girassóis que comem 
giestas de sol e somem, 
por marias-sem-vergonha, 
dos entretons de quem sonha 
fui te aspirando.

Por surpresas balsaminas, 
entre as ferrugens de Minas, 
por tantas voltas lunárias, 
tantas manhãs cineárias, 
fui te esperando.

Por miosótis lacustres, 
por teus cântaros ilustres, 
pelos súbitos espantos 
de teus olhos agapantos, 
fui te encontrando.

Pelas estampas arcanas 
do amor das flores humanas, 
pelas legendas candentes 
que trazemos nas sementes, 
fui te avivando.

Me evadindo das molduras, 
de minhas albas escuras, 
pelas tuas sensitivas, 
açucenas, sempre-vivas, 
fui te virando.

Pela rosa e o resedá, 
pelo trevo que não há, 
pela torta linha reta 
da cravina do poeta, 
fui te levando.

Pelas frestas das lianas 
de tuas crespas pestanas, 
pela trança rebelada 
sobre o paredão do nada, 
fui te enredando.

Pelas braçadas de malvas, 
pelas assembléias alvas 
de teus dentes comovidos 
pelo caule dos gemidos 
fui te enflorando.

Pelas fímbrias de teu húmus, 
pelos reclames dos sumos, 
sobre as umbelas pequenas 
de tuas tensas verbenas, 
fui me plantando.

Por tuas arestas góticas, 
pelas orquídeas eróticas, 
por tuas hastes ossudas, 
pelas ânforas carnudas, 
fui te escalando.

Por teus pistilos eretos, 
por teus acúleos secretos, 
pelas úsneas clandestinas 
das virilhas de boninas, 
fui me criando.

Pelos favores mordentes 
das ogivas redolentes, 
pelo sereno das zínias, 
pelos lábios de glicínias, 
fui te sugando.

Pelas tardes de perfil, 
pelos pasmados de abril, 
pelos parques do que somos, 
com seus bruscos cinamomos, 
fui me espaçando.

Pelas violas do fim, 
nas esquinas do jasmim, 
pela chama dos encantos 
de fugazes amarantos, 
fui me apagando.

Afetando ares e mares 
pelas mimosas vulgares 
pelos fungos do meu mal, 
do teu reino vegetal 
fui me afastando.

Pelas gloxínias vivazes, 
com seus labelos vorazes, 
pelo flor que desata, 
pela lélia purpurata, 
fui me arrastando.

Pelas papoulas da cama, 
que vão fumando quem ama, 
pelas dúvidas rasteiras 
de volúveis trepadeiras 
fui te deixando.

Pelas brenhas, pelas damas 
de uma noite, pelos dramas 
das raízes retorcidas, 
pelas sultanas cuspidas, 
fui te olvidando.

Pelas atonalidades 
das perpétuas, das saudades, 
pelos goivos do meu peito, 
pela luz do amor perfeito, 
vou te buscando.

Paulo Mendes Campos

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Poema de Hilda Hilst


E por que haverias de querer a minha alma
Na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas
Obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo prazer lascívia
Nem omiti que a alma está além, buscando
Aquele Outro. E te repito: por que haverias
De querer minha alma na tua cama?
Jubila-te da memória de coitos e de acertos. 
Ou tenta-me de novo. Obriga-me.

Do desejo - 1992

sábado, 14 de abril de 2012

CANTIGA PARA NÃO MORRER


Quando você for embora
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar
moça de sonho e de neve,
me leve no seu olhar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

(Os Melhores Poemas de Ferreira Gullar. Seleção de Alfredo Bosi. São Paulo: Global, 2002.)




domingo, 12 de fevereiro de 2012

INSTANTES


Se eu pudesse viver novamente a minha vida, na próxima trataria de cometer mais erros. Não tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais.
Seria mais tolo ainda do que tenho sido, na verdade bem poucas coisas levaria a sério. Seria menos higiênico. Correria mais riscos, viajaria mais, contemplaria mais entardeceres, subiria mais montanhas, nadaria mais rios.
Iria a mais lugares aonde nunca fui, tomaria mais sorvete e menos lentilha, teria mais problemas reais e menos problemas imaginários.
Eu fui uma dessas pessoas que viveu sensata e produtivamente cada minuto da vida, claro que tive momentos de alegria. Mas, se pudesse voltar a viver, trataria de ter somente bons momentos. Porque, se não sabem, disso é feita a vida, só de bons momentos; não percam o agora.
Eu era um desses que nunca ia a parte alguma sem um termômetro, uma bolsa de água quente, um guarda-chuva e um paraquedas; se voltasse a viver, viajaria mais leve.
Se pudesse voltar a viver, começaria a andar descalço no começo da primavera e continuaria assim até o fim de outono.
Daria mais voltas na minha rua, contemplaria mais amanheceres e brincaria com mais crianças, se tivesse uma vida outra vez pela frente.
Mas, já viram, tenho 85 anos e sei que estou morrendo.


O texto é de autoria desconhecida. Alguns, entretanto, o atribuem ao escritor argentino Jorge Luís Borges, e outros, à escritora americana Nadine Star.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

INTERVALO

eu posso apontar a parte de mim que te perde,
o vão que de mim se consome,
a mão que do teu ar ressona

eu posso emprestar a dor que do meu olho sobra
o canto que do meu lábio morre
a voz que é silente nas horas

E dessa ausência que é carne, calar.
E desse tempo que cai,

engolir.

Dheyne de Souza. Poema publicado em Pequenos Mundos Caóticos