domingo, 26 de abril de 2009

A MÁQUINA

A Máquina mói carne
excogita
atrai braços para a lavoura
não faz atrás de casa
usa artefatos de couro
cria pessoas à sua imagem e semelhança
e aceita encomendas de fora

A Máquina
funciona como fole de vai-e-vem
incrementa a produção do vômito espacial
e da farinha de mandioca
influi na Bolsa
faz encostamento de espáduas
e menstrua nos pardais

A Máquina
trabalha com secos e molhados
é ninfômana
agarra seus homens
vai a chás de caridade
ajuda os mais fracos a passarem fome
e dá às crianças o direito inalienável ao
sofrimento na forma e de acordo com
a lei e as possibilidades de cada uma

A Máquina engravida pelo vento
fornece implementos agrícolas
condecora
é guiada por pessoas de honorabilidade consagrada,
que não defecam na roupa!

A Máquina
dorme de touca
dá tiros pelo espelho
e tira coelhos do chapéu

A Máquina tritura anêmonas
não é fonte de pássaros (1)
etc.
etc.

(1) isto é: não dá banho em minhoca/atola na pedra/bota azeitona na empada dos outros/atravessa períodos de calma/corta de machado/inocula o vírus do mal/adota uma posição/deixa o cordão umbilical na província/tira leite de veado correndo/extrai víceras do mar/aparece como desaparece/vai de sardinha nas feiras/entra de gaiato/não mora no assunto e no morro (...)
Manoel de Barros

domingo, 19 de abril de 2009

A FUNÇÃO DA ARTE/1


Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul.

Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.

Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto o seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.

E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:

- Me ajuda a olhar!




Eduardo Galeano

quinta-feira, 16 de abril de 2009

AS BÊNÇÃOS

Não tenho a anatomia de uma garça pra receber
em mim os perfumes do azul.
Mas eu recebo.
É uma bênção.
Às vezes se tenho uma tristeza, as andorinhas me
namoram mais de perto.
Fico enamorado.
É uma bênção.
Logo dou aos caracóis ornamentos de ouro
para que se tornem peregrinos do chão.
Eles se tornam.
É uma bênção.
Até alguém já chegou de me ver passar
a mão nos cabelos de Deus!
Eu só queria agradecer.


Manoel de Barros

domingo, 12 de abril de 2009

OS POEMAS


Os poemas são pássaros que chegam

não se sabe de onde e pousam

no livro que lês.

Quando fechas o livro, eles alçam voo

como de um alçapão.

Eles não têm pouso

nem porto;

alimentam-se um instante em cada

par de mãos e partem.

E olhas, então, essas tuas mãos vazias,

no maravilhado espanto de saberes

que o alimento deles já estava em ti.



Mário Quintana


domingo, 5 de abril de 2009

Sobre o Livro dos Abraços

Recentemente uma grande amiga me deu de presente um livro que, segundo ela, há tempos gostaria de ter me dado. Ela disse que talvez só eu fosse capaz de entendê-la ou que só eu gostasse tanto do livro como ela. Quando o abri, me deparei com o seguinte:
"O MUNDO
Um homem na aldeia de Neguá, no litoral da Colômbia, conseguiu subir aos céus. Quando voltou, contou. Disse que tinha contemplado, lá do alto, a vida humana. E disse que somos um mar de fogueirinhas.
_ O mundo é isso - revelou. _ Um montão de gente, um mar de fogueirinhas.
Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem queimam; mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar, e quem chegar perto pega fogo."
Desde que o abri não consegui parar de lê-lo. Fiquei pensando como poderia eu ter vivido sem antes ter lido isso. Foi como se o meu mundo mudasse, ou como se eu passasse a enxergar o mundo com outros olhos. O livro "é afiado como a própria vida. Pode afagar, pode cortar".