domingo, 23 de agosto de 2009

O AUTO-RETRATO


No retrato que me faço

- traço a traço -

Às vezes me pinto nuvem,

Às vezes me pinto árvore ...


Às vezes me pinto coisas

De que nem tenho mais lembrança ...

Ou coisas que não existem

Mas que um dia existirão ...


E, desta lida, em que me busco

- pouco a pouco -

Minha eterna semelhança.


No final, que restará?

Um desenho de criança...

Corrigido por um louco ...


Mário Quintana

sábado, 15 de agosto de 2009

LITERATURA, UMA PAIXÃO...

"O mundo parecia-me encantatório e agigantava-se quando narrado pelos seres que, intitulados escritores, invadiam as coisas inanimadas, a cama, a comida, grudavam-se às paredes dos casebres e dos palácios. Uma sucessão de narradores que, conquanto derrotados pela fadiga da escritura, pela batalha estética e pela própria morte, gradativamente iam sendo substituídos por outros com igual fervor e destino de narrar. Todos eles, porém, ao me fazerem crer na vida, trasmitiam-me a noção básica de que convinha exceder-se a fim de concretizar o enlace humano, o difícil e desejado casamento entre o real e o imaginário, o céu e a terra.
A vida não era o que eu via e deixava-se tocar, o que me ensinavam. Seu arcabouço, ainda que incompleto, ultrapassava o meu saber, ia além do previsto, do alcançável a olho nu, ao simples tato, ao enlevo da imaginação. Mas a esperança, que também provinha do desconhecimento, reabilitava o meu amanhecer."
Nélida Piñon. Coração Andarilho.
Você já se apaixonou pela literatura? O que é literatura para você?

domingo, 9 de agosto de 2009

ODE DESCONTÍNUA E REMOTA PARA FLAUTA E OBOÉ: DE ARIANA PARA DIONÍSIO


I


É bom que seja assim, Dionisio, que não venhas.

Voz e vento apenas

Das coisas do lá fora


E sozinha supor

Que se estivesses dentro


Essa voz importante e esse vento

Das ramagens de fora


Eu jamais ouviria. Atento

Meu ouvido escutaria

O sumo do teu canto. Que não venhas, Dionísio.

Porque é melhor sonhar tua rudeza

E sorver reconquista a cada noite

Pensando: amanhã sim, virá.

E o tempo de amanhã será riqueza:

A cada noite, eu Ariana, preparando

Aroma e corpo. E o verso a cada noite

Se fazendo de tua sábia ausência.


Hilda Hilst



sábado, 1 de agosto de 2009

O QUE ME DÓI NÃO É


O que me dói não é

O que há no coração

Mas essas coisas lindas

Que nunca existirão...


São as formas sem forma

Que passam sem que a dor

As possa conhecer

Ou as sonhar o amor.


São como se a tristeza

Fosse árvore e, uma a uma,

Caíssem suas folhas

Entre o vestígio e a bruma.





Fernando Pessoa