domingo, 31 de maio de 2009

PRIMAVERA NEGRA

“Os sonhadores sonham do pescoço para cima, com os corpos seguramente amarrados na cadeira elétrica. Imaginar um mundo novo é vivê-lo diariamente, cada pensamento, cada olhar, cada passo, cada gesto matando e criando de novo, com a morte sempre um passo à frente. Cuspir no passado não é bastante. Proclamar o futuro não é bastante. A gente precisa agir como se o passado estivesse morto e o futuro fosse irrealizável. A gente precisa agir como se o próximo passo fosse o último, o que ele é. (…) Somos aqui da terra para nunca acabar, o passado nunca cessando, o futuro nunca começando, o presente nunca acabando. O mundo do nunca-nunca que seguramos em nossas mãos e vemos, mas que não somos nós mesmos. Nós somos o que nunca é concluído, nunca é modelado para ser reconhecido, tudo que existe mas que não é o todo, as partes sendo tão maiores que o todo que só Deus, o matemático, pode imaginá-lo”.

[Henry Miller in Primavera Negra. Trad. Ayando Arruda]

domingo, 17 de maio de 2009

O AMOR


O amor, quando se revela,

Não se sabe revelar.

Sabe bem olhar p'ra ela,

Mas não lhe sabe falar.


Quem quer dizer o que sente

Não sabe o que há de dizer.

Fala: parece que mente.

Cala: parece esquecer.


Ah, mas se ela adivinhasse,

Se pudesse ouvir o olhar,

E se um olhar lhe bastasse

Pr'a saber que a estão a amar!


Mas quem sente muito, cala;

Quem quer dizer quanto sente

Fica sem alma nem fala,

Fica só, inteiramente!


Mas se isto puder contar-lhe

O que não lhe ouso contar,

Já não terei que falar-lhe

Porque lhe estou a falar...



Fernando Pessoa.

domingo, 10 de maio de 2009

OS NINGUÉNS

As pulgas sonham com comprar um cão, e os ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico a sorte chova de repente, que chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chove ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura.
Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos:
Que não são, embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não têm cultura, e sim folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.


Eduardo Galeano

domingo, 3 de maio de 2009

ENTRE O SER E AS COISAS

Onda e amor, onde amor, ando indagando
ao largo vento e à rocha imperativa,
e a tudo me arremesso, nesse quando
amanhece frescor de coisa viva.


As almas, não, as almas vão pairando,
e, esquecendo a lição que já se esquiva,
tornam amor humor, e vago e brando
o que é de natureza corrosiva.

N´água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

E nem os elementos encantados
sabem do amor que os punge e que é, pungido,
uma fogueira a arder no dia findo.

Carlos Drummond de Andrade