quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Pensamentos de Ricardo Reis, segundo Saramago

"Chove lá fora, no vasto mundo, com tão denso rumor é impossível que, a esta mesma hora não esteja a chover sobre a terra inteira, vai o globo murmurando águas pelo espaço, como pião zumbidor, E o escuro ruído da chuva é constante em meu pensamento, meu ser é a invisível curva traçada pelo som do vento, que sopra desaforado, cavalo sem freio e à solta, de invisíveis cascos que batem por essas portas e janelas, enquanto dentro deste quarto, onde apenas oscilam, de leve, os transparentes, um homem rodeado de escuros e altos móveis escreve uma carta, compondo e adequando o seu relato para que o absurdo consiga parecer lógico, a incoerência rectidão perfeita, a fraqueza força, a humilhação dignidade, o temor desassombro, que tanto vale o que fomos como o que desejaríamos ter sido, assim o tivéssemos nós ousado quando fomos como que desejaríamos ter sido, assim o tivéssemo nós ousado quando fomos chamados a contas, sabê-lo já é metade do caminho, basta que nos lembremos disto e não nos faltem as forças quando for preciso andar outra metade"


Extraído de O Ano da Morte de Ricardo Reis, José Saramago. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. Pag. 197.

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